Filha de agricultor, ela herdou, portanto, a paixão pelo campo da família e, após o falecimento do pai assumiu a fazenda e a criação de gado Nelore, nos sistemas de cria, recria e engorda e inseminação artificial. Depois, sua caminhada seguiu promovendo a fundação de Núcleo Feminino do Agronegócio, uma ideia muito bem-vinda que acabou se tornando referência para muitas mulheres do agro
A produtora rural Carla de Freitas, responsável pela Agropecuária Bela Vista, em Rondônia, uma das fundadoras do Núcleo Feminino do Agronegócio (NFA) e integrante do comitê de conteúdo do Congresso Nacional das Mulheres do Agronegócio, está envolvida com os negócios do campo há muitos anos.
Sua família foi para Rondônia em 1981, um ano antes de o território ser formalizado como Unidade da Federação. Teve acesso aos fatos dessa transformação, que se deu mediante trabalho árduo e a necessidade de preservação das áreas. “Havia muita demanda de mão de obra para trabalhar a terra e torna-la útil”, conta.
E para entender um pouco sobre a gestão da fazenda realizada atualmente pela pecuarista, ela relembra alguns episódios marcantes.
“Meu pai era agricultor no Paraná, lidava com café. Na década de 70 mudou-se do Sul para região Norte do Brasil, em Rondônia. Alguns anos depois, também fui morar em Rondônia e lá montei uma ótica”, lembra Carla. A primeira loja foi aberta por volta de 1981 e logo estava gerenciando quatro lojas, uma rede que se mantém aos seus cuidados até hoje. Com o falecimento do meu pai, assumi a fazenda. “Ele era um grande produtor rural e havia começado a mexer com gado. Por um período de três anos, obtive auxiliou do meu marido na parte administrativa, mas quando nos divorciamos, em 2000, assumi a fazenda sozinha”.
Na administração do pai, havia um trabalho com gado Nelore, nos sistemas de cria, recria e engorda e inseminação artificial. Quando assumiu a propriedade, ela se deu conta do desafio gigante que estava sob sua responsabilidade. “Nunca pensei que iria administrar uma propriedade rural. Eu era filha de fazendeiro, mas nunca tinha trabalhado sozinha, administrando. Peguei a fazenda já com um certo nível de tecnologia. Isso foi em 1997, e achei que seria interessante continuar esse trabalho desenvolvido por meu pai. Em 2001, resolvi trilhar o caminho de melhoramentos do gado, a inseminação e a participar do Nelore Natural. O Carlos Viacava, então presidente da Associação do Nelore, incentivou os pecuaristas, especialmente os de Rondônia, a que começassem um trabalho de medição de carcaça, de qualidade de Selo, uma coisa que no Brasil era muito novo, e a Fazenda Bela Vista fez o primeiro Dia de Campo, participou do primeiro abate técnico e ganhamos dois prêmios. Senti que era o momento de transformar meu negócio numa pecuária mais tecnológica, mais evoluída. Na época, eu não entendia absolutamente nada de fazenda e contei com a ajuda de um consultor, Dr. Fernando Andrade, que até hoje trabalha comigo, e fui buscar informações. Comecei a contratar pessoas e a Fazenda Bela Vista ingressou num trabalho intenso de inseminação, com cruzamento industrial, de aprimoramento nas carcaças. Hoje, basicamente, tenho minha vacada Nelore e faço o IATF (inseminação com tempo fixo) com gado europeu. Assim eu consigo bezerros mais pesados, mais precoces. E por volta de 2005, além da cria, recria e engorda, introduzi dentro da fazenda técnicas mais modernas de agricultura, com a integração lavoura/pecuária”.
Como o mundo do agronegócio está em constante transformação e pede avanço dia a dia, Carla de Feitas começou a utilizar ferramentas para melhor administrar os avanços. “Há uns 11 anos, mais ou menos, resolvi que eu gostaria de ampliar os processos da Fazenda Bela Vista, porque ela deveria dar um salto ainda maior, muito mais tecnológico. E foi nesse momento que contratei um especialista que me alertou sobre um trabalho muito sério, com a intensificação da fazenda, trazendo a lavoura. Parti então para a técnica de integração lavoura e pecuária, e nesse projeto, quem me ajudou muito foi o Dr. Antônio Carcher”.
Com a nova iniciativa, vieram também exigências práticas, a necessidade de fazer todo o treinamento das pessoas, que cuidavam de boi e de repente passaram a ter que trabalhar com a agricultura intensificada. “Crescemos bastante, iniciamos confinamentos e plantio de soja, de milho”.
A caminhada da produtora seguiu promovendo a fundação de Núcleo Feminino do Agronegócio, uma ideia muito bem-vinda que acabou se tornando referência para muitas mulheres do agro.
“Um dia, quando estava na Sociedade Rural Brasileira, me encontrei com o Francisco Vila, um dos nossos coordenadores, e com a Cristina Bertelli. Estávamos então discutindo, e eu dizia que nós deveríamos fazer um congresso de mulheres. Já havia participado de um grupo de mulheres empresárias, em Londrina (PR), e lá havia sugerido que fizéssemos um congresso só de mulheres. Naquela ocasião, minha ideia não surtiu muito efeito. Em São Paulo, voltei a esse assunto. Coloquei então a questão que foi abraçada com atenção e interesse pelo Vila e pela Cristina, que sugeriram a criação de um grupo de mulheres, onde pudéssemos trocar informações. Com a proposta lançada, nascia naquele momento o Núcleo Feminino do Agronegócio, um espaço para as produtoras rurais, essas mulheres que, como eu, tocam suas fazendas sozinhas há muitos anos, um ambiente de intercâmbio, de estudo, com participação em debates, algo que envolvesse o agronegócio, as fazendas.”
Foram então delineadas as bases desse pequeno núcleo, que teria de ser muito direcionado a tratar dos assuntos relacionados ao agronegócio. “Nossa primeira reunião foi na FIESP em 26 de outubro de 2010”.
Para falar das dificuldades iniciais, ela pontua alguns pré-conceitos existentes naquela época.
“Era uma questão de ‘falta de voz’. Quando alguém chegava na propriedade e procurava o gerente ou com ex-marido, não acreditando que era uma mulher quem estava à frente dos negócios. Ou vezes, quando estávamos em um ‘ambiente masculino’, e quando começávamos a falar, as pessoas realmente achavam uma piada. Acreditem o não, era dessa forma que as coisas aconteciam”.
No desenvolvimento do NFA, outras mulheres foram convidadas e seguia-se a logística de esclarecer que grupo não tinha nenhuma finalidade filantrópica, que não se tratava de um grupo social ou religioso, e que só seriam aceitas mulheres que realmente trabalhassem com a fazenda. Isso com o intuito de trocar informações de negócios, da lida diária de uma fazenda. “Foi então elaborado um estatuto, a princípio muito informal, porém, quando as pessoas começaram a conhecer e o grupo e ele foi aumentando, vimos que estavam se espelhando em nós para formar outros grupos. Daí a necessidade de formalizar o grupo, para que tivéssemos voz, mas sem entrar na questão política, diferente de outros coletivos que possuem um viés econômico, político”.
Para ilustrar um pouco mais esse tema, podemos citar uma publicação da revista Forbes,’ Agro 100’ que selecionou entrevistadas do setor e fala a respeito de grupos de empoderamento, networking, ações de inclusão e liderança feminina. “Ao derrubarem preconceitos e quebrarem paradigmas, elas assumiram posições de liderança nas fazendas, em entidades representativas, tomando para si a responsabilidade e o controle em todos os elos da cadeia da agroindústria”.
Na publicação, aparece um levantamento da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), apontando que as mulheres já estão na liderança de 35% das propriedades rurais brasileiras. Mostra histórias singulares do avanço feminino no campo, contando a trajetória de algumas dessas mulheres como Tereza Vendramini (presidente da SRB), Maria Antonieta Gazzelli (ex-presidente do NFA), Malu Nachreiner (líder da Crop Sciense Bayer), Corrine Ricard (presidente da Mosaic Fertilizantes no Brasil), Suzanne Heywood (presidente da CNH Industrial) e Pollyana Saraiva (executiva de Rural Banking da Rabobank).
“A busca de soluções para os constantes desafios que surgem juntamente com o crescimento do agronegócio”, diz Carla de Freitas. Somos gestoras de fazendas que se reúnem para troca de informações sobre a gestão das fazendas e conhecimento do mercado. O Núcleo formado por executivas de vários estados do país, gestoras de pequenas, médias e grandes propriedades. E, segundo Carla de Freitas, “não interessa o tamanho da propriedade, mas o que essa mulher faz e como ela trabalha”.
Para Carla, a principal conquista foi retirar o preconceito de que poderia existir um grupo nesses moldes e que ele seria respeitado como o Núcleo Feminino é hoje. É realmente uma vitória, a quebra de um paradigma, mostrar para o Brasil todo que existem mulheres que estão realmente trabalhando, e trabalhando sério. É muito importante saber que podemos ser fonte inspiradora, que estamos ajudando outros grupos de mulheres que estão hoje atuando no país. O NFA foi um dos principais grupos que incentivou o Congresso de Mulheres. Estivemos sempre ali, fiz palestras nos dois primeiros anos, realizamos nossas reuniões do Núcleo dentro da FIESP, o que se traduz numa conquista de respeitabilidade. Um dos pontos mais essenciais que denotam conquista é enxergar que há admiração entre nós, que nos sabemos capazes e que estamos sendo ouvidas.
“Em nossas reuniões do NFA, falamos muito sobre a utilização de uma série de ferramentas que faz com que com que nos tornemos produtores realmente sustentáveis. Não adianta achar que a sustentabilidade é um conceito único, separados dos demais. Por isso que eu digo que um proprietário rural, hoje, que administra uma empresa que tem que ser sustentável, tem de permanecer firme nos três pilares: o social, o econômico, e o meio ambiente. Se esse quesitos estiverem firmes, isso é sustentável”.
“Hoje, palavra sustentabilidade já faz parte da vida de qualquer produtor rural moderno. Não tem como ignorar o bem-estar animal, o meio ambiente, a qualidade da carne. Quando você coloca uma fazenda para ser altamente tecnológica, ela tem alguns pilares que já fazem parte desse universo”.
Em sua fazenda, Carla já preconiza esse sistema como uma regra estabelecida, e que é desenvolvida há anos. “E é a mesma coisa no bem-estar animal. Estou hoje modificando os meus currais, esses novos são todos voltados ao bem estar dos animais. Enfim, são técnicas aplicadas e necessárias a partir do momento em que se entra no futuro, o que já está acontecendo com a 4.0, a grande revolução industrial, a era digital, o que o mercado está exigindo hoje. A parte da sustentabilidade, do bem-estar animal, da ecologia, de uma série de gestão, tudo isso faz parte de um pacote que se chama novo agronegócio”.
Para Carla, atualmente não há espaço para empresas que não sejam bem geridas. Hoje o próprio mercado está impulsionando isso. A pecuária, antigamente, perdia muito para a agricultura, que teve um avanço gigante, pois as pessoas começaram a desenvolver técnicas para que pudessem produzir numa mesma área, preservando o meio ambiente (plantio direto e uma série de coisas). Eles foram muito além, e hoje se produz muito no Brasil. Quando a pecuária começou a perceber que muito produtor começava a fazer a conta, vendo o que estava acontecendo com a agricultura, e que a pecuária não estava conseguindo acompanhar, começou-se a fazer a integração da lavoura com pecuária, quer dizer, introduzir técnicas altamente tecnológicas dentro da fazenda para se produzir tanto quanto. Com isso, houve um avanço muito grande, uma alavancagem na pecuária. Agora, tanto a agricultura como a pecuária no Brasil estão sendo cada vez mais tecnológicos e podendo produzir mais.”
E para finalizar, a pecuarista lembra que para comemorar os 10 anos de NFA, o grupo resolveu fazer uma visita técnica em Israel. “Fomos recebidas pelo consulado de Israel. Fizemos várias visitas técnicas, conhecemos o país todo e acho que isso prova o tanto que a gente tem de respeitabilidade. Não o grupo, mas a mulher, a empreendedora, a mulher que está tocando esse trabalho, essa é para mim a maior conquista da minha vida”.
E além do Congresso Nacional das Mulheres do Agro, que estará em breve realizando sua sexta edição, com temas fortes e atuais, temos também a importante movimentação do Agro do Bem com o super empenho de todos, ação motivada por mulheres do agro.
Quando se fala em participação feminina no agro brasileiro, temos muitas vozes a serem ouvidas, seja por suas experiências junto aos mercados produtores, inciativas profissionais e, principalmente por suas visões voltadas ao desenvolvimento estruturado, agregando valores ao agro moderno, dosando bom senso e inovação com respeitabilidade e influência”.